Não conseguimos ver a extensão total do seu corpo, parecia muito amplo. Pontos cintilantes vinham à superfície. Reunimo-nos no dia seguinte com todos os coreógrafos na sala de ensaio. Não tocamos no assunto, já deviam saber de tudo. Giulia tirou de uma caixa o protótipo a ser testado. Olhou para Mika, que da outra extremidade da sala começou a se movimentar para rapidamente montar no espaço um cenário que imitava um “inferno barroco”, montou um cenário infernal ao mesmo tempo violento e delicado, não apenas repleto de objetos vermelhos, mas com imagens de monstros, gosmas de árvores, alimentos em decomposição e carcaças de animais eletrocutados – estava se esforçando para criar uma espécie de desconforto generalizado. Aquilo também lembrava uma floresta noturna. Mika via sentido nisso para dialogar com a ideia de butô. Todos nós nos impressionamos diante da floresta infernal. Mika fez sinal para Giulia, que na sequência ligou a máquina.
A máquina projetava no espaço hologramas e ruídos, criando imagens e cenas inteiras baseadas naquilo que existia ao seu redor, como se duplicasse nossa realidade, mas de modo exacerbado, mais acentuado e real. (Duplicava a nossa realidade de modo mais real.) Wesley, com seu ímpeto militante, começou a emitir algumas palavras de ordem, para testar, ao passo que sons ganhavam forma emulando um conflito armado. O inferno transformou-se em um cenário de guerra: fugíamos de bombas, atacávamos inimigos. Demos risadas com algumas palavras que brotavam de nossas bocas. O inferno se transformava. Fiz um gesto de silêncio e suspensão. Com o gesto de silêncio e suspensão, todos pararam. Pararam de falar e de se mexer. Era o comando para o simples procedimento de plateau: equilibrar o espaço ocupando todos os pontos e mantendo o eixo da terra em estase, silêncio e suspensão, testando o limite daquela projeção de imagens e sons da máquina sobre nós mesmos, respirando.
Wes não podia conter sua ofegância expressa em gotóculas de suor – nós nos olhávamos – e aos poucos começamos a delinear o voto de silêncio, sem falar nada mas sem impedir que a pergunta maior, generalizada, surgisse de pronto nas nossas faces, mantendo nossos corpos suspendidos em silêncio sem impedir que se materializasse imediatamente em nossa face o espanto, fazendo-nos questionar se iríamos conseguir sair disso, e também nos perguntávamos se a máquina ligada seria o nosso piripaque no inferno, como Aisha anunciara semanas atrás. Nós todos estávamos parados, suspendidos, mas agora sem nenhuma qualidade dramática, sem nenhuma presença artística pois desmontamos a postura, ainda que suspendidos completamente naquilo, mais do que antes, e nos desligamos do estado apoteótico que um ensaio minimamente nos exigia, uma atneção artística, digamos. Então o imperativo que sempre buscamos, para sair do regime aurático e conseguir a qualidade de presença feita apenas de ser, o extrato do ser vivo, foi ali implementada: queríamos sair daquela atmosfera. Mika e Wes, a dupla que desde sempre mais interpretavam e falseavam a vida com um certo exagero artístico, agora se olhavam de forma verdadeira. Os olhos deles se agigantaram. Pareciam dois cães, e sua presença entrou em um estado naturante aguardando a virada da imagem com a próxima projeção na esperança de sair disso. Wes começou a rir, Mika compenetrada, bancando até o limite o inferno ao qual no submeteu, como se fosse de mentira, como se escondesse uma culpa iminente – e Giulia estava de costas. Agora que percebi, Giulia de costas, a única sem compartilhar o olhar com o resto.
Nós aos poucos fomos sendo imersos numa planície abandonada. Era uma paisagem noturna forrada de terra com garrafas plásticas, embalagens de alumínio soltas, alguns sacos voando com o vento das frestas do portão, cores cintilantes sem conteúdo. Descobrimos naquele instante que esse seria o cenário. Rompemos a suspensão do plateau de modo abrupto, em direção à elaboração desse estado prévio, a maioria de nós com um sorriso macabro no rosto, o da razão, o da certeza de que fazíamos a coisa certa. Começamos a tocar, ver, colocar o ouvido nas coisas... Andando na planície. Fizemos gestos para que observássemos com as mãos o espaço criado, e nisso começar um “eterno retorno” em looping com a terra, madeira, fios, filetes de luz, folhas, geleia, mel, gosma, cabelos… todos os elementos do inferno que iam se subtraindo, tornando-se o lixo esquecido daquela planície.