“Um piripaque, um piripaque... Cuidado!” Me perguntei se haveria algum risco catastrófico em dar liberdade à utilização de máquinas rudimentares feitas por uma engenheira de robótica. Mas não parecia ser uma ideia ruim, sequer arriscada. Fui tomado por uma náusea. Aisha pegou minhas mãos ainda quentes do café e disse: a apresentação será no estádio Pacaembu; vamos fazer algo simples, nada de sucatas tecnológicas. Sim, ela estava certa, pensei. Uma vez mais recebo o seu acolhimento, mas agora sob efeito das mãos. As minhas suavam em excesso. Comentamos sobre o suor ser um sintoma do transtorno. Ela sentiu pena e encontrou um jeito sutil de dizer que não permitiria a montagem de um cenário daqueles, voltado a uma estética “infernal” das sucatas e sujeira emulando um palco junkspace com resíduos humanos deixado sobre a crosta terrestre. Vamos fazer apenas aquilo que sabemos, uma peça simples, uma demonstração do butô, três atos limpos no espaço, nada mais. A produtora de Aisha me paga adiantado. Retomando a consciência, voltando com a escrita em cadernos. Agendo uma consulta médica. Estase criativa. Tudo vai bem.
Mas então um fato curioso. Na semana seguinte ao café, chego em casa depois de passar a tarde inteira na sala de ensaio preparando o roteiro do próximo encontro e treinando coreografias possíveis que eu mesmo poderia executar sob efeito da minha atual condição – caminhadas lentas com uma hora de duração, derretimentos dos ossos, exaustão da queda, implosões –, chego em casa e encontro Giulia na sala, a engenheira. Abro a porta, entro na sala e ela vira seu rosto para mim com uma lentidão precisa, cinematográfica; o meu marido está de costas, olhando o infinito pela janela. Por um instante, penso que Lin está chorando, naquela sua mesma pose do choro, mas lembro que ele não chora desde o início do seu tratamento hormonal. Os dois estão possivelmente tramando uma “intervenção” relacionada ao meu estado dissociativo. Me sinto envergonhado. Não queria passar por essa humilhação na frente deles, em especial depois de aceitar fazer o que Aisha me pedia e, definitivamente, parar de sofrer por conta disso.
“Vão testar as máquinas?”, pergunto para descontrair o silêncio. Dizem que não. “Ótimo, porque não vamos mais usá-las”, respondo, com tom de afronta.
Depois de um tempo, Giulia revela o segredo que a trouxera ali. Aisha está trabalhando em conjunto dos militares. De fato, o ministro da cultura acabara de ser exonerado por conta de um vazamento de informação sobre o festival. A notícia ainda não é pública, mas é só questão de tempo. Vão tirar do rio Tietê a grande cobra. A motivação central disso, segundo o relatório vazado, está no fato de a cobra ter sido gestada no rio ao longo de muitas décadas, possivelmente mantinha não apenas a água suja, mas também escondia uma matéria prima naquela região, detectada por forte incidência de raios gama. O festival seria um evento internacional tramado pelo exército e a empresa japonesa dona dos drones. Todos os eventos do festival vão distrair a cidade para que se conclua a empreitada, aliada a uma boa imagem entre Brasil e Japão. Na perspectiva pragmática de Aisha, eliminar a cobra seria o ato necessário para uma vida digna, sem contar que depois prometiam tirar os drones do céu. Nada disso parece me afetar muito, ali no calor do momento. Eu já esperava algo assim? O que mais eu esperava acontecer? Lin vira-se e percebo que estava com lágrimas no rosto.
Nós três entramos em um carro e fomos para um ponto afastado da cidade às margens do Tietê. É noite, tudo já está mais calmo. Saímos do carro e iniciamos uma caminhada naquele cimento vasto misturado com lodo até encontrarmos um resto de areia e pedras, terra batida, um solo fixo perto de um ponto com vista ao fundo do rio escuro e opaco. Ficamos lá durante horas. Foi um ótimo momento de conversa. Giulia me contou sobre o seu protótipo, um captador de som conectado a um holograma; ambos se retroalimentavam, produzindo imagens a partir do que ouviam e sons a partir das imagens captadas. “E qual era o resultado material desse dispositivo?”, perguntamos. Imagem, movimento e som manifestos em associações livres como num sonho, de forma tátil e sinestésica. Ninguém havia testado a ideia. O mundo representado pelo holograma corria o risco de apenas duplicar aquilo que temos à vista e em mãos.
“Esse é o nosso único risco”, Giulia dizia, “o de trazer composições que coincidem com a vida.” O resultado seria uma peça entediante.
Mas havia outro perigo, na visão de Lin: a máquina pode implantar uma figuração “mais real” da existência, não necessariamente idêntica à vida. Como se fosse uma lente super amplificadora da nossa percepção. Isso é um risco considerável para o corpo humano, que capta apenas parte dos fenômenos da matéria mundana devido à nossa composição corpórea e física. A exposição abrupta e condensada a um conjunto de fenômenos incomuns pode não ser suportável ao nosso campo de visão e acabar sendo convertido, no melhor dos casos, em um apagão da memória; é o caso do recalque pelo inconsciente. Ou então pode gerar um estado de choque, desespero e cólera, mesmo aos mais resilientes.
A dimensão da tragédia se apresenta como experiência. Neste caso, somo confrontados com uma verdade primordial, algum tipo de informação selvagem resguardada no entrelaçamento da carne acessado não pela língua, mas pela relação inadiável do nosso corpo com a entropia cósmica que nos cerca. A revelação do momento no qual sequer o mundo existe uma vez que a escuridão cobre tudo. Uma fundura em que nada é discernível. A energia reveladora daquilo que chamam de “máquina do mundo”, morte xamânica, Aleph, matéria vibrátil, fogo compacto... Mas fazer perdurar no espaço/tempo essa experiência da máquina fulgurante, sem a intermediação de palavras que apenas apontem para tal ideia inominável... Isso seria um gesto de extrema violência. Silêncio. Algo se aproxima.
“Olha! Vem vindo ali”, sussurrou Giulia. Nós três nos contorcemos.
Na superfície, um movimento redondo e lento.
A água verde turva aos poucos mudava de cor. Se incendiava de um calor opaco. Ia se intensificando uma cor vermelha vinda lá do fundo enquanto a ondulação em S já fazia pequenas ondas que avançavam nas margens. Um neon translúcido emanava do próprio corpo submerso no rio, agora já beirando a superfície. Era o vermelho da cobra.
Lucas Miyazaki é escritor e performer. Autor dos livros Catálise (2022) e Elefantes (2015, Prêmio Nascente). Participou das peças Não Ela: o que é bom está sempre sendo destruído (2020), Ele (2022, Prêmio Mix Brasil), Culpa (2023) e O sol desapareceu (2023). Atualmente, pesquisa Literatura Comparada em mestrado na USP (Laboratórios de criação – Escrita de Literatura e Teoria).