ISABEL CÂMARA (1940-2006)
Extraído do único livro que a autora publicou, Coisas Coiós (1998), “Marcel Proust” revela o toque singular de sua escrita. Um poema capaz de mesclar memória, mapeamentos da literatura e da cultura, numa vertente de exacerbação em sua veia lírica movida por conjugações surpreendentes com entrechos caóides de toda uma história na vida e nas artes. Entremostra-se nesse retrato de autor um traço vivido de teatralidade mais os cortes cinemáticos do verso com toda uma força de montagem e, por vezes, uma aleatória colagem. Fica impresso, a um ponto extremo, o sentido de um depoimento em bruto (sob um viés de inacabamento, à beira de uma não-arte), mutante a cada linha em sua propulsão vertiginosa e abrangente.
Em um mesmo movimento, estranha e imantadora, reverente a referências clássicas (da Antiguidade à Modernidade) e tomada de soltura/loucura, a poética de Isabel Câmara merece ser (re) visitada. Pois mantém um intrigante elo com experiências de existência e linguagem do tempo presente. Depois de ter sido produzido há décadas, com pouquíssima recepção, numa condição perpetuada até hoje de obscuridade, esse trabalho poético torna Isabel Câmara, desde seu surgimento em meio a tantos outros autores revelados nos anos 1970, a mais marginal entre os “marginais”. Ressoa agora como uma estonteante novidade.
MSV
MARCEL PROUST
A mão repousada
é o rosto de pele asmática
onde pecam raios de sol e noivas perdidas
em chávenas escadarias
&
Françoises atentas.
–- Combray Illiers.
Se Albertine não o viu admirando a brancura da bainha
de um vestido amarrotando a Manhã
nada nasceu com ele
agradecido e ingrato diante de tão bela-triste Ninga
Tão tolo!
Cisnes à parte Gilberte era toda Ninfa
arremessada sede entre pernas
e ele de tudo fazia caso feito em Veneza
quando a peste faz belos os moços gondoleiros
e nós
bichas
passeamos veados à coleira
...não somos senão Outros –
os melhores escritores cantores-pouco-covardes
Seres
desse vasto e tão pouquinho mundo
Ah
as coisas cessam
as Bibliotecas translúcidas de Veneza
cessam
O cristal vermelho da taça
onde cor de jasmin era o rosé
servido no campo enormemente vazio da sacada
quebra-se
porque também
cessa
o rufar de corações como tambores
anunciando a Procissão do Corpo de Deus
Faca sob o entrudo
confetti/confeitos
assoprados ao Carnaval do vai lá dá cá
espatifando desejos e criando outros
fatos inumeráveis casualmente desfeitos
dos
capazes de melhor vir a ser.
Faca.
Açoite de morte e vida
Num carro conversível:
– “mata-me – mata-me”
O punhal despudorado aparecia sobre a palma
cuja mão via tangos e auroras
onde a morte devia se fazer ao suplicar
ao estrangeiro
“mata-me. Mata-me”. Sem nenhuma razão de ser.
Certo. Não era punhal de prata
nem desses quando peões sonolentos
caçando o sêmen dos machos
Arrasam-nos.
Quem sabe fosse e fora
punhal e de prata
açoitando a Noite e o Amor do Poeta
pela Poesia morta
cujo nome
CECÍLIA
de alguém muito próximo
fez chorar toda ÍNDIA
todo BRÂMANE
todo XINTOÍSTA
Quando se fizer necessário
só então virás
Mãe
Verduras perdidas na memória
chás e madeleines
e teu beijo jamais suffira.
Serás tu no entanto o melhor
que a femme maladive dont je me suis capable
se fará homem por inteiro
Diante de todas e tantas
ou quase nenhuma ausência.
Porque tu debruças e o travesseiro
Amacia a penugem da nuca
& toda testa é um sucumbir à doçura que depões – Senhora
Então partes
porque à Sala a visita se faz espera atenta
e sonolento
o escritor finge dando-se por sonhado
... SAQUAREMA ...
Que significado está aí lacrado?
Que passeios nus sobre falsos corcéis
Cavalos apenas
levaram-me em silêncio pela orla
beirada de amurada
onde jazem as ondas de nossa Juventude?
NÔ NÔ NÔ
Teatro arrebentado nas palavras
Noturna era a Ave em que me transmudavas
ou
apenas me vias Garça
estremunhada inerte
mares
rios arredios
nossos arremedos de vida de vida
só de Vida.
Se o lago fora água cristalina
aí nos debruçaríamos
Tu
o incapaz do Repouso
Feito hera arremetendo-se em silêncio e solene
Feito Vela e Veleiro ao vento
enlaçados sempiternos
Açoitando o terreiro e mar:
em uns o Solo o Grão o Medo
em outros a sofreguidão pela chegada.
Apagar-se como luz de vela. Ó mentira!
EILÁ OI Lá EHEIÁ
Ei Mãe
ouço tua voz e me vejo
não me fitando Tu
Ainda mais claro e por vez primeira
Ouço-te
(no entanto tantos tantos anos...)
- - - - FILHA - - - -
E nada surpreende
Seja esta a primeira vez
e não a única quando
sem olhar-te qual semblante
seja grito e ousadia o chamado
- - - - MÃE - - - -
Tudo por primeira vez...
E eu queria apenas que só Rainer Maria Rilke soubesse.
Mas dizes-me escondida
(alma impiedosa)
Deixa de mentiras
– Teu avô português
tua avó sertaneja ou até só analfabeta
são tua tez doentia teu sem jeito para o pecado
a confissão a absolvição
o amor.
Quase tudo em ti ainda é malvadez.
- - - - MÃE - - - -
Fosse a mim
dada a graça eu
teria de ti feito nadas
de arroz-doce nas armadilhas do forno
entre suspiros e natas boiando
ao sem saber das restantes semimortas Ondinas
daquele único morto
Aos ombros da memória de Schubert a sussurrar
seu erro
seu Eros
sua Árvore sua Natureza: Novalis –
meu Amor.
“The angel that presided o’er
my birth said: little creature
formed of God and mirth. Go,
Love, without the help of
anything on earth.” (WILLIAM BLAKE)
NÔ era como chamávamos o Romancista e Poeta LÚCIO
[CARDOSO
RUBENS CORREA além do sonho dentro do sonho foi o
[melhor ator
do Teatro Brasileiro
Deus abençoe e nós damos graça a dra. Nise da Silveira
Ao lado de Bethânia, na noite do Rio (1967)