DERRELIÇÃO-PROSA — ATO LITERÁRIO
(Lucas Miyazaki)
DERRELIÇÃO-PROSA — ATO LITERÁRIO
por Lucas Miyazaki
Escritor. Mestrando no Programa de Pós-Graduação em Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa (USP).
Entre duas linguagens que sublinham, a princípio, experiências muito distintas de fabular – a cena no palco e a narrativa no livro –, uma prosa como a de Hilda Hilst convoca ao gesto inaugural dos sentidos, momento prévio cuja deriva da linguagem encaminha-se para fora do lido para um ato performativo. Em A obscena senhora D, a travessia da obra atua em nós com um empuxo da palavra viva cuja reverberação rítmica (da escrita anotada à mão, das vocalizações e eloquências pré-subjetivas) revela algo da performatividade cênica na escrita literária – ou da liberdade de um texto que advém de uma mimese performativa. O momento prévio que ainda não compreende o corpo, “essa armadilha, nem a sangrenta lógica dos dias, nem os rostos que me olham nessa vila onde moro, o que é casa, conceito, o que são as pernas, o que é ir e vir” (HILST, 2016: 13).
A fuga primordial da novela — o afastamento do “centro de alguma coisa que não sei dar nome”, “derrelição” — anuncia uma escrita de si que não parte de um lugar discursivo reconhecível, do “ser como” de um realismo representativo, evidenciando a pura pulsão de um corpo no seu ato de escrita. Um correlato entre o “ato literário”, como coloca Jacques Derrida em A escritura e a diferença, e o “texto” no teatro (a matéria da dramaturgia usada no acontecimento de uma cena) – text, segundo Richard Schechner ao pensar o vetor da dramaturgia no teatro performativo. (apud FERNANDES, 2010: 159)
Nada displicente com o livro e a historicidade da Literatura, muito embora deslocando-se destes centros, a escrita enquanto ato sublinha um primeiro livro possível que procede do “querer escrever” e da ideia de “uma escritura inaugural”. Um ato de significação que hesita entre descentramento e afirmação de um jogo, “fazer surgir o já lá no seu signo” (DERRIDA, 1971: 26). Deve criar seu sentido, em tal ato, ao começar no estado prévio de um performer, um sujeito que salta ao indeterminado de uma ação pura e real: “O sentido deve esperar ser dito ou escrito para se habitar a si próprio e tornar-se naquilo que a diferir de si é: o sentido. (…) O ato literário reencontra assim na sua origem o seu verdadeiro poder.” (Ibid.: 24)
Recapitulando, ainda, a fenomenologia merleau-pontyana por Derrida: a literatura não é comunicação de um a priori do espírito humano; é uma “ação oblíqua”, um novo idioma que se constrói nessa performatividade real e construtiva entre leitura e escrita. (Ibid.)
Para o filósofo de A escritura e a diferença, o ato literário se dá no concomitante fechamento do livro e abertura do texto, fazendo surgir, no agora, “o irrepresentável do presente vivo” (ibid., 154). Uma malha acionária que encontra o seu suporte verdadeiro (ou suporte a ser inventado, para além do papel) no circuito entre performance de escrita e estado performático acionado na leitura-livro – um circuito corpóreo de ritmos e vibrações de mundo. O arquivo final (texto) impresso no inorgânico livro também parece vivo (aberto), em Hilda, cuja prosa conflui de uma malha de ritmos no entre poesia, dramaturgias, desenho e narrativa, sendo o extrato da aventura de fabulação inscrita na própria pedra lapidada de uma cavernícola, a obscena senhora Derrelição em sua penumbra singular da escada fria, no canto do mundo: “Lixo as unhas no escuro, escuto”. (HILST, 2016: 13).
A forma prosa revela-se como a fabulação livremente materializada da escrita (captura dos ritmos e vibrações do mundo). É essa especificidade do lugar da montagem-desmontagem aberta e ativa da palavra correndo solta, tremulante, que vemos ser acionada. Esse lugar de amplitude gestual que organiza-se como forma inclassificável de contar histórias de vida.
Silvina Rodrigues Lopes, a respeito da “literatura como experiência”, sugere o texto ficcional como “lugar neutro”: ele deve “preservar o potencial de mudança, de diferenciação infinita”, acolhendo o exterior sem a redução de um “ser como” metafórico ou espelhamento de sentimentos mapeados. E é no “tempo da experiência” como “impulso para fora da história”, no ritmo e “inscrição de fala”, que tal lugar neutro torna-se palco para o acontecimento. (LOPES, 2012: 13)
Josephina Ludmer (2007), na cena literária contemporânea e disruptiva do Cone Sul (início dos anos 2000), atrela ao estatuto de certa prosa, dita “pós-autônoma”, toda uma materialidade de campos do saber que compõem nossa realidade.
O livro, portanto, convoca à leitura de uma plataforma onde há uma “exposição universal” da realidade, um “mostruário global web” que indetermina a linguagem “autônoma” da literatura mas se contamina com outras artes e discursos (científico, jornalístico, televisivo). O gesto escritural, então, é uma “prova do presente” e “fabricação de realidades”.
Esses movimentos da prosa devem ter um nome muito próximo ao de texto no contexto teatral pós-dramático a partir do qual o corpo presente em um palco faz acontecer uma história mas assinala, como experiência de fruição, o risco real posto em cena e o risco que instaura ao espectador.
Atualizar a narrativa possível à experiência literária tem a ver com o estado performativo da prosa. Estado inusitado de escritura e diferença, de risco e de ação para o salto a uma sempre derrelição do escrever-ler.
Não é à toa que, ali onde o teatro parece estar novamente começando (novamente reivindicando a sua essência), algum acontecimento na literatura pode abrir uma possibilidade cênica diferente. Escritores (nada dramáticos ou “teatrais”) escrevem textualidades vivas e simbolizam momentos incisivos do teatro não-mimético (Mallarmé, Gertrude Stein, Oswald de Andrade, Samuel Beckett…).
A eventual ficção que haja, nos dois casos [a respeito de Gertrude Stein e Qorpo Santo], é relativizada por essa perspectiva que aponta para o momento da criação e, quase sempre, opõe o próprio à ação dramática em curso, criando uma disjunção temporal e uma explícita polaridade de registros. (…) desdobra-se no ato performativo de descrever simultaneamente seu processo de constituição. (idem).
A prosa sob o signo do ato literário não quer dizer transformar um texto em uma performance estilo Abramović, uma performance a partir de um poema, amplificando-o em variações múltiplas das mídias, e nem sequer, necessariamente, em uma dramaturgia. Mas convoca às gestações escriturais e leituras em sintonia com um devir do performer. Poderíamos pensar, também, em uma “estética performativa” (Fischer-Lichte) do escrever? Procedimentos, derivas e ações performáticas que fazem certa escrita narrativa a partir de acontecimentos próprios aos da arte da presença? Um “estado de produção” ativado nos modos de ler-escrever. Algo similar ao que Schechner chama de texto para um teatro energético, textualidades eivadas de “intensidades, forças e pulsões de presença” (FERNANDES, ibid.: 44).
Um texto funciona como materialidade autônoma que deve ser ocupada e acoplada pelo encenador, quem passa a entender como sendo dramaturgia as possibilidades virtuais e narrativas que serão então abertas pelos “territórios de ação” que o texto ativa. O ato literário deve ser uma “aventura da palavra” a partir de suas “intensidades verbais”, “motim verbal”, criando a abertura do texto e fazendo circular a palavra em direção a uma encenação de vida capaz de expressar “novas contradições da realidade” (ibid.: 154).
(…) há uns vivos lá dentro além da palavra, expressam-se mas não compreendo, pulsam, respingam, há um código no centro, um grande umbigo, dilata-se, tenta falar comigo, espio-me curvada, wind flowers astonished birds, my name is Hillé, mein name madame D, Ehud is my husband, mio marito, mi hombre, o que é um homem? (HILST, ibid.: 13)
REFERÊNCIAS:
DERRIDA, Jacques. A escritura e a diferença. São Paulo: Perspectiva, 1971.
FERNANDES, Sílvia. Teatralidades contemporâneas. São Paulo: Perspectiva, 2010.
FISCHER-LICHTE, Erika. Estética do performativo. Trad.: Manuela Gomes. Lisboa: Orfeu Negro, 2019.
HILST, Hilda. A obscena senhora D. São Paulo: Mediafashion, 2016.
LOPES, Silvina Rodrigues. Literatura, defesa do atrito. Belo Horizonte: Chão da Feira, 2012.
LUDMER, Josefina. “Literaturas postautónomas 2.0”. In: Ciberletras Revista de crítica literaria y de cultura, No 17, Julio 2007.
RAMOS, Luiz Fernando. Mimesis performativa: a margem de invenção possível. São Paulo: Annablume, 2015.