Renata Conde é psicanalista, graduada em psicologia pelo IP-USP. Mestranda na linha de pesquisa “Laboratórios de Criação” (FFLCH). Autora dos livros de contos Sol a Pino (Editora Caravana, 2022) e O dia em que a noite chegou mais cedo (Editora Libertinagem, 2023). Organizadou o livro de ensaios Misoginia e Psicanálise (Editora Larvatus Prodeo, 2022).
Este romance – Br-Clítoris – é uma demonstração da capacidade de pensamento. Uma das ações mais realizadas pela protagonista trata deste invisível ato de pensar. “Pensa no tijolo brasileiro e na feijoada.” (Pavla, 2023: 26). Acompanhamos a travessia dessas reflexões.
BR-Clítoris manifesta-se como um escrito transgênero; não se fixa em nenhuma definição de gênero literário. Mesmo assim, está no campo da ficção, tem sujeito, tempo e espaço. Concerne a uma narrativa, ainda que não priorize enredo e construção de personagens. A protagonista surge como a linguagem, que conduz os leitores de uma página a outra pela potência criadora e pulsação estética, oferecidas a cada linha. A pulsão escópica, o ímpeto de seguir olhando o que há de imantador, belo mesmo, o desejo de ver, se mostra como o primeiro sentido a ser tocado pela palavra de Ana Pavla.
Figura 1
O Nome
O primeiro ponto que convida para a análise é o título. BR-Clítoris se revela um nome poderoso, atraente, que desperta o interesse na leitura, conjugando sexualidade, feminilidade, Brasil, estrada, viagem e liberdade. Todos os elementos associados aos termos que denominam a obra se desdobram na narrativa apresentada.
BR é Brasil, é Estrada. Cintila pelo espaço aberto que a escritora desbrava.
Figura 2
BR – identificação de estrada
BR – abreviação de brilho
Uma estrada, um corte. Uma bandeira do Brasil, atravessada por uma faixa com os dizeres: Brilhante. Clítoris. (Ibid.: 56-57)
O que há de cintilante, de pregnante na narrativa, diz respeito a seu potencial de ambiguidade. “A frase como raio” (Ibid.: 15). A luz das estrelas se estende para as noites nos apartamentos. Ao mesmo tempo, alude à purpurina dos carnavais e das festas rotineiras. Transpassa. O prefixo trans se mostra operante e onipresente. Ofusca e fascina. São a um só tempo referente a joias e pedras arrancadas do umbigo dos rios amazônicos.
O brilho da mica cintila sob a água. Os minerais que compõem as areias dos rios. Areias dos rios levadas por caminhões para fazer cimento e para, imitando pedra, revestir fachadas (...) O ouro, os ornamentos, as folhas brilhantes que revestem entalhes de igrejas emergiram da floresta. (Ibid.: 10 e 56)
A mineração é enfrentada pela letra da autora desde o título: um traço componente da estrada brasileira e do País no interior da paisagem. Br- Clítoris se revela um livro contemporâneo da tragédia de Mariana e Brumadinho, ao avanço do garimpo ilegal na floresta, herdeiro de uma Nação que derrubou uma montanha com as mãos (na ocasião da fatídica Serra Pelada) e esburacou um Estado (a exemplo de Minas Gerais). Isso não se dá sem consequências. O fluxo narrativo em fragmentos e espasmos acompanha os sulcos abertos pela febre do que cintila na escrita, com seu poder crítico, e nos recursos naturais violados em progressão assustadora.
BR é estrada. Estrada ainda mais contraditória. Induz à viagem. Não se separa do ímpeto libertário. A trajetória de uma mulher que cruza o país no dorso de uma moto se apresenta de modo frontal.
Quando uma mulher sobe numa moto ela abre as pernas e permanece de pernas abertas toda a viagem. Toda a estrada. A mulher come a estrada. O asfalto é imediato. Assim como o vento. Assim como a barba. (...) A mulher na moto produz o vento. (Ibid.:51)
O texto roça o rosto do leitor feito sopros de um livro que tem as páginas viradas pelo movimento dos ares. O afeto da liberdade é um resíduo da leitura desse trabalho. A estrada conduz à viagem, mas também ao desmatamento. Produz tanto um corte quanto uma cobra. Feminino e masculino. Androginia indissociável.
Brilho, mineração e beleza; estrada, liberdade e exploração; feminino e masculino. A contradição permanente compõe e revela a leitura. Um Brasil captado pela velocidade da BR, à altura do corpo-motocicleta, clivagem clitórica.
Há ainda outra camada de significação indicada na designação BR- Clítoris. Pensando BR como estrada, podemos ler: “Estrada para o Clítoris”. Encontramos aqui um toque de humor que denuncia um padrão heteronormativo de sexualidade. O clítoris é o único órgão da anatomia humana cuja função é exclusivamente o prazer. Órgão que apenas corpos desde o nascimento-mulher possuem e, justamente por isso, são usualmente desconhecidos pela indústria masculina do sexo. Quantos não são os homens que desconhecem a estrada para o clítoris? Seria este romance um caminho para tal aprendizagem? Uma visada no erotismo feminino com potência de feminilização dos corpos em geral?
Provocativo, destarte, desde as letras grafadas na capa, o leitor entra em contato com os temas abordados no corpo da ficção: Brasil contemporâneo – desmatamento, mineração e garimpo; sexualidade feminina e o contínuo desejo de liberdade.
O Corpo
Figura 3
No miolo da narrativa podemos acompanhar uma dimensão afetiva e cambiante, transformativa e transformadora. Nas páginas que seguem uma à outra há a presença constante de imagens e construção de frases com trabalho rigoroso de linguagem. O narrador/narradora está em permanente fazer-se de si. Com poeticidade, inscreve no leitor paixões de amor e bondade. “A transparência da água embeleza tudo. Deve ter inspirado o verniz. Há água em tudo que é belo. Como a bondade.” (Ibid.: 12).
Mauricio Salles Vasconcelos afirma que
O romance como gênero tem um pathos, um fator afetivo que guia toda busca. O romance é uma iniciação de um fragmento de ser. A iniciação é mutação. A sequência narrativa é uma sequencialização mutante, um elo das mudanças ocorridas no tempo. (informação verbal)[1]
O escritor e ensaísta sustenta o aspecto sensível da letra. O texto de um autor alcança a interioridade do leitor, promovendo um sentimento. Apresenta ainda a característica de pesquisa do romance enquanto gênero, no qual se opera uma investigação. O romance em seu apogeu teve centralidade na história e desenvolvimento do herói/heroína, no que veio a ser conhecido como romance de formação. Em todo romance se encontram traços de invenção e formação, costurados em sequência. Mauricio Salles oferece a perspectiva de pensar a sequencialização mutante.
Ana Pavla empenha uma pesquisa de si nas páginas sequenciadas em BR-Clítoris. Opera um encadeamento narrativo pela mutação.
Analisaremos com brevidade, procedimentos que propiciam tais efeitos. Na página 13 há uma comparação com fins metafóricos: “Ela é tão insone como o aeroporto na madrugada” (Ibid.:13). Trata-se de uma imagem precisa para a transmissão do estado da personagem – insone como aeroporto de madrugada: um ambiente funcional, desperto, enérgico, que coça os olhos, se dispersa no celular, apaga metade das lâmpadas e sente frio. O leitor compreende de imediato a situação da protagonista. A autora continua na descrição desse espaço semiacordado até que coloca a personagem dentro do local que era antes uma imagem, sendo agora cenário: “É a única na área de desembarque, às quatro da manhã, quando já há um pouco de luz natural atravessando o vidro das portas automáticas. Verifica de minuto a minuto, o destino dos voos noturnos.” (Ibid.:14)
Destaca-se que na frase anterior, a qual inaugura a cena, a personagem “é tão insone como o aeroporto na madrugada” (Ibid.:13, grifo nosso). A partícula “como” expressa uma comparação. Portanto, neste trecho, o aeroporto se mostra apenas uma metáfora ilustrativa do estado de espírito da heroína. Na sequência opera-se um deslocamento: “É a única na área de desembarque” (Ibid.:14, grifo nosso). A protagonista é a única na área de desembarque. Logo, está dentro deste lugar. Assim sendo, o aeroporto, que antes era metáfora, torna-se espaço da narrativa.
“O aeroporto internacional é diferente agora que ele vai embora” (Ibid.:14). Aqui há uma síntese dos dois processos. A personagem foi colocada dentro do espaço físico do aeroporto, no qual “ele” parte, em um voo com o qual se despede. Este território do acontecimento – o aeroporto – fica “diferente agora que ele vai embora”, sendo assim, passa a demonstrar a interioridade da narradora, superando sua função de ambientação da trama.
De maneira fluida, a autora aduz o leitor de uma página a outra, não pelo enredo, mas pela fruição estética que surpreende. Tamanha fluidez pode ser expressa pelo ritmo do voo de uma folha, que segue o movimento dos ares e das águas, sem oferecer resistência.
Na capa da primeira edição há o retrato de uma folha alaranjada. Entra em cena uma folha logo nas primeiras páginas do romance:
(...) a folha laranja passou outonal pelos pés imersos dela; folha trazida pela corredeira, embaraçada na confusão das águas, o que foi um tanto desesperador, tanto para folha como para ela, porque parecia que a folha ia embora, que logo partia, que os pés eram só passagem, mas a folha teimava e rodopiava em torno dos tornozelos unidos, enroscando-se, até que enfim, deslizou em queda livre e foi embora desconhecida, entre tantas outras folhas alaranjadas de tantos outros destinos, até recuperar a rota lisa dos rios, rota das cachoeiras toscamente mapeadas pela burocracia florestal, até ser graficamente interrompida e ser só, enfim, rota do mar. (Ibid.:.7-8)
Por conseguinte, podemos sintetizar este romance como uma história narrada através das imagens, que tem como personagem a linguagem, e ritmo, o voo das folhas. O tempo é o das águas: “Agora as narrativas podem seguir a duração das cachoeiras.” (Ibid.: 8) “(...) que vão caindo, caindo (...).” (Ibid.: 8)
Nos intervalos entre estes elementos escuta-se o silêncio.
O silêncio é inaudível. Não podemos conhecer o silêncio. Apenas o não-dizer, que é cheio de significado. O silêncio inclui passos na escada de incêndio quando a voz se apaga. O silêncio é uma presença entre nós.” (Ibid.: 45)
Observa-se, deste modo, uma sequencialização mutante pelas quebras e fluidez, atingida pelo recurso lúdico da manipulação da temporalidade – com o recurso de ir e vir na sucessão da história, aberta à circularidade, e radicalidade de linguagem no propósito experimental e poético.
O efeito no leitor é o de uma experiência amorosa. Tornamo-nos todos amantes com as letras do livro em questão. Não qualquer amor. Amor como afeto de impulso ao outro e à alteridade, pulsão de vida e morte. Vida no aspecto da insistência de viver de modo comunitário, no entrelaçamento solidário das mãos. Morte, na coragem de correr riscos e defender a sobrevivência com os dentes. O inseparável dos polos da vida e morte no magnetismo diário.
Um romance – ensaio sobre a sexualidade feminina, mineração e desmatamento no Brasil, que tem como procedimento estético o encadeamento de imagens na sequencialização da narrativa – atua nos mecanismos dos sonhos de condensação e deslocamento; sustenta a originalidade de apresentar como personagem a própria linguagem: assim, consegue força para ser o eixo da narrativa. Conquista o silêncio pelo ritmo das folhas; promove no leitor a ambivalência do afeto na dimensão tão problematizadora quanto aberta por BR-CLÍTORIS.
Amor feito de riscos, uma aventura irrecusável à beira da mortalidade e da mutação.
Referências Bibliográficas
FREUD, Sigmund. “Além do Princípio do Prazer”. In: FREUD, S. História de uma neurose infantil (“O homem dos lobos”), Além do Princípio do prazer e outros textos (1917-1920). Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2019 (p. 161-240).
A interpretação dos sonhos (1900). Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.
PAVLA, Ana. BR-Clítoris. São Paulo: Córrego, 2023.
WOOLF, Virgínia. Um teto todo seu. Tradução Bia Nunes de Souza. São Paulo: Editora Tordesilhas, 2014.
Lista de ilustrações:
Figura 1: Die Doing / Afternoon in love (Carsten Güth)
Fonte: https://notimefortv.biz/produkt/afternoon-in-love/
Figura 2: Não identificado
Fonte: https://br.pinterest.com/pin/291397038359954974/
Figura 3: Não identificado
Fonte: https://br.pinterest.com/pin/611574824462648586/
[1] Fala proferida em oficina literária, em 13 de maio de 2022.