Os transtornos agravavam-se com a minha incapacidade, bem naquele período, de iniciar uma nova pesquisa de butô, a arte que vinha praticando há mais de três décadas. Coincidia também com o convite que recebera para dirigir uma peça no espaço cultural, em uma mostra de artes da cena.
Aisha, a curadora, me enviara um email sobre o chamamento. Mencionava ter selecionado uma equipe de cinco artistas do butô com quem eu trabalharia. Nós faríamos parte do Pavilhão Ásia, deveríamos montar uma peça de butô como homenagem a essa expressão nascida no pós-guerra do Japão, completando então cem anos de seu surgimento com Hijikata Tatsumi e a peça Cores proibidas. Senti um profundo desgosto com a proposta. Era resultado de uma série de iniciativas de reproduzir as origens, em encenações puristas sobre o passado que mais pareciam encobrir o futuro.
No café com a curadora, confessei não ter nenhuma pesquisa em andamento. Isso não lhe pareceu ser um problema, e sim um ponto positivo, uma vez que Aisha já havia até mesmo separado um possível nome para o projeto, re-butô. Após o abraço cultural que ela me deu (um abraço acolhedor, caloroso, cuja função é atrofiar qualquer gesto excessivo ou inconveniente), me despedi dela prometendo prontidão e total empenho na empreitada. Mas assim que cheguei em casa, naquele dia, senti o distanciamento incomum para elaborar a pesquisa de butô. Lin aceitava minha nova condição, mas não sem demonstrar, no fundo dos seus olhos, uma preocupação iminente.
Certa noite, vagando em fluxo de inércia pelas abas do meu desktop, caí em uma página que me mostrava um estilo de pintura chamada kusozu, uma prática japonesa surgida no século VIII e popular até o século XIX. Fiquei hipnotizado desde a primeira imagem.
A partir daí, fiz as conexões que procurei evitar. Decidi sair de casa e confirmei minha hipótese assim que cheguei à praça pública e fui visto pela horda de transtornados. Eles não faziam absolutamente nada. Estavam sentados alguns, pendurados outros, se equilibrando em degraus, de cócoras. Mas ao me avistarem, percebendo em mim o fluido da substância maligna, e eu, o distanciamento do espírito ao corpo neles, vieram em bloco, me encurralaram.
Olhei para cima, sem gesticular nada. Os drones faziam voos parados, cobrindo parte do céu, mas não afastaram nenhum deles de perto de mim. Percebi que suava da mesma forma que sempre suei ao longo dos meus tremores noturnos. Não sentia medo de verdade, apenas pensava que deveria senti-lo, e tentava reagir para me afastar da ameaça. Eu continuava onde estava, paralisado mas com o tremor, do jeito que meu corpo sempre ficava à noite. Nada indicava que alguém os removeria dali. Uma das mulheres, a ruiva, deu uma longa cusparada no chão. O homem alto e magro reagiu com um ruído, sua espécie de risada, rompendo o silêncio. Eu me desloquei em direção à pequena brecha que ainda restava no semicírculo que faziam ao redor de mim. Andei o mais rápido que pude. Estando atrás da minha cabeça, sentia-os perto, vindo em minha direção. Me pus a correr ao ouvir de novo aquele cacarejo. Acordei sem me lembrar de quando caíra no sono. O cenário era o mesmo de sempre. Roupas íntimas abandonadas, toalhas e um amontoado de cobertores e lençóis concentrados em um só canto do quarto. Desse amontoado, o cheiro que inundava o ambiente inteiro.
As janelas já tinham sido abertas, com o céu branco, e ouvia-se o barulho da cidade. Ao me dar por mim, vi que Lin me olhava em silêncio. Por que você não começa daí?, ele sugeriu. O fluido ficava concentrado e acelerava a decomposição da matéria orgânica. Sim, seria um bom começo, pensei.