RE-BUTÔ 

(novela em folhetim) 

Lucas Miyazaki

Suor nas faces. Olhares sobre mim. Olhares rápidos para todas as direções. Cada um percebia o outro no silêncio grandiloquente. Evitei propor uma súmula sobre o ocorrido, mas não podia controlar os eventos que pulsavam em minha cabeça. As tatuagens de Wes pareciam vivas. Caules de planta e dorsos de dragão se moviam obscenamente; as letras na clavícula, no angel, pulsando. Logo abaixo delas, o peito e, no peito — a operação! Os dois cortes masculinizadores. Isso mudava tudo. Isso mudava o que? Deveria mudar alguma coisa. Já sabia dessa informação, mas tudo ganhava uma dimensão trans, uma cólera trans… E agora na ponta extrema da sala, Giulia e Mika, vistas por mim como as mulheres trans. As duas em silêncio, a expressão neutra. O que era aquilo? Tudo ia sendo escoado para o humanismo latejante expresso em Aisha (tinha a cara retorcida com um sorriso sutil), que nos devolvia a estabilidade cultural do humano.

Passado o primeiro instante efusivo, o enunciado do ator tornara-se uma retórica codificada. Mika ergueu a mão e disse: 

Gostaria de retomar o que foi elaborado por Wes, pois o butô se ocupa precisamente destas lacunas, entre uma máxima e outra. 

(Mika tinha as roupas suadas, ainda pulsava nela alguma ofegância do aquecimento de Aisha. Mas: que voz apaziguadora! Ao lado dela estava Giulia, que baixou a cabeça. Nada daqueles gestos levava à vergonha, à timidez, e sim ao natural, à vida espontânea que exuberava da Mika, que Giulia apenas enaltecia, e vice-versa, enfim. Ao intervir com a elegância do gostaria de… após a fala de Wes, nós já havíamos nos convertido uma vez mais a novas opiniões alheias: o butô é o gesto que se ocupa precisamente destas lacunas entre uma máxima e outra.) 

Sim, começou desse modo. Então como poderíamos discordar? Ela disse realmente isso. Perigo, perigo!, pensei, e ergui a mão, igual o fiz com Wes, em gesto de reprimenda, exigindo uma resposta concreta. Abri a boca, falei: 

A pesquisa, a pesquisa, por favor. 

Criei para mim mesmo uma razão cínica no instante seguinte dessa intervenção. Silêncio. Já se passavam noventa minutos de explosões em aquecimentos, em exercícios escolares, em disputas territoriais violentas e cuspes no vazio. Mas Aisha me salvava com tal estratégia. O fator maléfico estava lá fora, no movimento geral da economia, nas guerras planetárias. Em breve, implodiria na sala — segundo a previsão de alguns, no subterrâneo, seja no oceano ou nos rios e estratos submersos, onde toda uma vida não vive da fotossíntese, mas do calor do magma, fato que muda tudo.

Enquanto isso, incomunicável, inútil, eu escutava meu corpo apodrecendo diante de todos, o interior dele soltando os ruídos de um besouro com mais uma carcaça disfuncional (eu estava caindo na inércia). Como podia estar tão desconectado de tudo! Cair nessa inércia: esta sinapse apareceu a mim repentinamente. A origem desse fundo falido que eu era naquele momento de transtorno. Então seria uma pesquisa sobre cair na inércia. 

Certamente não viria nenhum movimento daí. Mas voltei meu olhar para Mika como se fosse minha senhora, sim, sim, continue, agora percebo a pesquisa. Ninguém veria um braço desenhar triângulos no espaço. Nada a ser traçado. Não há sequer matéria o suficiente para que as ações se desenvolvam em desenhos, mas sim para que se extraia e se aprofunde o máximo a paralisia. 

Tal processo consiste em narrar a lacuna, as ruínas. 

Meu corpo ouviu as palavras de Mika, a voz altiva, que se conectava com aquela desconexão generalizada — a esta altura, não pude deduzir mais nada a respeito do estado dos corpos na caixa preta onde ensaiávamos — dando vida a alguma maldição, a alguma força fora dali. 

Alguns chamavam isso de movimento de macaco. Essa suspensão das lacunas. A tal paralisia do corpo falido. Finalmente, chega a acontecer. Mas um ato menor, um ato puro de “macaco”, não propriamente animalesco, e sim quase humano, antes de tornar-se humano. Gira no espaço sem um centro, estando este em todos os lugares. Algo estranho se forma na lama (Hijikata). 

Mas no butô de hoje, e daí vem minha possível oposição, os coreógrafos vão diretamente para o cimento, para o que vai dar a liga ao gesto, no intuito de produzir um corpo, criar todo o cimento, dizendo sua cor, textura, procedência. Precisam ser propositivos, mostrar o que seriam os movimentos contra a economia geral, mostrar a reversão vital. No entanto, o que sempre me pergunto refere-se ao descompasso dessa poética… Se as coisas viscerais imprimem uma ocupação plena do corpo no espaço fazendo calar o outro e nos direcionar para o ato, para a tomada de poder, para o embate — They talk, we play. É isso, e não outra coisa, dizem-nos —, as questões que decorrem daí são: esse movimento seria a propaganda de si? Por outro lado, a vala da inércia é o real ponto de partida? Não posso estar presente, diz algum fantasma do butô. 

A dança não acontece, a fragilidade do gesto, o estranhamento do corpo, o cimento mole, líquido, que não fixa. Olho novamente para isso aqui, me coloco um pouco mais longe e vejo que não é uma casa, não tem cimento nenhum, é só uma maquete! Palavras para maquete. Pior ainda, rabiscos… E cada vez menos. Portanto, não o vazio, não o nada, mas uma espécie de demora sináptica que então não concretiza por fim o corpo, mas fica parado, no meio, ou então retrocede. Cair na inércia, na origem desse fundo falido, um neurônio hesita, perde-se no caminho, acaba sendo arrastado por um macaco que aparece, deixa-se levar pelos seus passos (o macaco-guia de um neurônio lento). Tudo fica suspenso. Seguir os passos do macaco. Uma lentidão. Um espaçamento amplo entre as coisas. Macaquinhos batendo pau. Mika acabava de falar. Giulia, ao lado dela, em silêncio balançando as pontas dos pés e estalando os dedos, com um sorriso forçado. Aquilo me preocupava. 

Lucas Miyazaki é escritor e performer. Autor dos livros Catálise (2022) e Elefantes (2015, Prêmio Nascente). Participou das peças Não Ela: o que é bom está sempre sendo destruído (2020), Ele (2022, Prêmio Mix Brasil), Culpa (2023) e O sol desapareceu (2023). Atualmente, pesquisa Literatura Comparada em mestrado na USP (Laboratórios de criação – Escrita de Literatura e Teoria).