Entrevista com 

José Emílio-Nelson

Tiago Cfer, Luis Serguilha, Oriana Iório, Marcelo Ariel e Mauricio Salles Vasconcelos elaboraram questões para um dos mais importantes poetas atuais de língua portuguesa. Um diálogo aqui se articula em busca de um enfoque amplamente configurado, na tentativa de aproximação da imponente, polívoca e polifônica escrita produzida pelo autor de Beleza Tocada. 

 

Tiago Cfer

 

Quando se tem nas mãos uma obra poética como Beleza Tocada (1979-2015), fica-se com a impressão de que a construção de linguagem de um autor como o senhor está de um certo modo intimamente ligada ao tempo. De um certo modo, pois com a leitura de Beleza tocada a própria ideia de tempo ganha dimensões alargadas.

     Como a voz poética de José Emílio-Nelson, desenvolvida em sua longa trajetória, se relaciona com a época em que é enunciada? Ela estaria mais directamente associada às questões de seu tempo ou trata-se de uma dicção apreendida, antes, nas temporalidades da memória?

     Auxilio-me, antes de responder à pergunta que coloca, da Dimensão Estética de Marcuse que afirma, se bem cito, que a obra de arte é autêntica ou verdadeira não pelo seu conteúdo, isto é, simplificando, pela representação correta das condições sociais, não pela pureza da sua forma, mas pelo conteúdo tornado forma.

     No tempo em que vivi, nos anos de ditadura fascista de Salazar e Cardeal Cerejeira, escrevi poesia delituosa, mas com a pretensão de a manter numa configuração política dentro da dimensão estética. Em Beleza Tocada, nos livros que reúne do período da ditadura, relacionavam-se mais acentuadamente com a época. De um modo abrangente, talvez se tenha concretizado num quadro paradoxal de temporalidades, evocando, ainda assim, a ancestral atemporalidade da memória. De qualquer modo, nunca o escrito, penso eu, se circunscreve a um tempo como tal.

 

Marcelo Ariel

 

     Em termos literários, quais são as linhas de força ou antiforça em convergência no seu trabalho poético?

     Num relance retroativo, apontaria duas ênfases que negam o embelezamento, e que ressaltam de uma leitura imediata do que editei. A veemência de determinadas referências ao excrementício e ao cultivo de bufonaria espermática, ambas persistentes na trajetória reunida em Beleza Tocada (Obra Poética 1979-2015). Na obra tardia, estará presente, mais nitidamente, a “poesia cum filologia” (síntese de Pedro Serra), que é ditada pelo que a obriga ‘a’ “ vir-a-ser linguagem, ser-de-linguagem (A?)”, cito Mauricio Salles Vasconcelos.

     Haverá, paradoxalmente, convergência dessas linhas de força e antiforça, mas recuso maneiras únicas de escrever: recuso padronizar, estandardizar.  Afasto-me, como constato agora, no mais recente livro, Então Assim Falo, de Beleza Tocada, reunião do escrito entre 1979 e 2015, decerto, em movimento centrífugo, e contrapondo outra centralidade (uma antiforça centrípeta).

 

 

     Luís Serguilha

 

     Como vê a sua poesia em Portugal, geografia que teve e tem imensa dificuldade em lidar com o corpo, a diferença, a loucura e o pensamento?

 

     A poesia contemporânea portuguesa, a que mais se auto-censura, é simultaneamente uma poesia que se auto-premeia, avaliada inter pares, posso caricaturar?, é um carrossel em que o animal que faz de assento acaba por acomodar quem nele se senta, sedento, cobiçoso. Poesia que se satisfaz com a visão de uma paisagem para espairecer, a que responde à expectativa dos livreiros. Mais do que absorção desses objetivos comprazentes, segundo leio, segundo eu me leio, entendo-a como sendo de fuga perante a poesia constrangida a esse esforço, sufocada, ávida em responder ao gosto mercantil. Fujo do ensosso, mais ainda do exibicionismo de uma extravagância fingida, encarniçadamente bizarra, de banal irreverência idealizada. Não admira que a desmesura que escrevi acabe por ser um corpo estranho à poesia bestseller, à aceitação unânime dos acólitos. Ao mesmo tempo, expectante, dou conta do surgimento de alguns poetas e de algumas poetas que escrevem hoje, afastando-se desse quadro acomodatício que referi.

PICKELPORNO Díptico (2005-2006) 

Oriana Iório

 

     Em que sentido sua poética apresenta uma visão e uma ação políticas, considerando-se nossa época e o espaço da literatura’?

     Um poema surge num determinado contexto, mas faz-nos perceber significados que não estão confinados a esse contexto, como nos lembra Terry Eagleton, Derrida. Tal como Sartre dizia da linguagem, que a sua única tarefa era restituir o mundo, acrescentarei que a controversa ação do poema será ressignificar o mundo. Nessa função, com a consciência do porvir da linguagem, acaba o fazer poético por ser interventivo, por pôr às avessas, por ser intervertido. Esse é o sentido da práxis no espaço da literatura que me norteia: fazer-nos, como dizer?, conscientes da realidade, como disse Wallace Stevens.

 

     Tiago Cfer

 

     Concorda com a afirmação de Roland Barthes de que a língua, como desempenho de toda a linguagem, é fascista?

     A constatação barthesiana em Leçon, 1978, no Collège de France, do “embruxamento do nosso pensamento por causa da sua estrutura gramatical”, topoi com alicerces em Derrida, Deleuze, entre outros filósofos que referem a ideologia presente na linguagem, é uma denúncia de que a Langue, tal como a parole, bem como as restrições do discurso vulgar, colaboram com o poder, propiciam a manipulação ideológica, a alienação inconsciente. Esse servilismo do sistema é combatido, conforme Roland Barthes defende, pela esquivança que a literatura proporciona, pelo explorar a polissemia, ligando o prazer da língua ao prazer corporal, como ação de resistência. Cabe à literatura, na sua prática, fora da linguagem, para além da linguagem, na deslocação (déplacement), com persistência, um exercício corruptor da linguagem sem alcance que não seja servir a propagação pontifical, fascista.

 

 

     Mauricio Salles Vasconcelos

 

     Em desdobramento das questões de Ariana Iório e Tiago Cfer, qual seria o significado de escrever hoje poesia e em língua portuguesa?

     Num país de séculos de obscurantismo, com os escritores permanentemente vítimas da barbaridade, de censura e auto-censura, como mais recentemente, cerrada repressão durante os 48 anos de fascismo, faz sentido escrever hoje, e em língua portuguesa, do Brasil e das ex-colónias, numa miscigenação linguística, porque é futuro, transvaza o passado.

 

     Como pode ser apreendido o contexto literário atual?

     Coexistem propostas que respeitam as tradições estéticas, repousantes, e outras que, pelo contrário, estimulam a desmesura das interrogações. 

     O contexto social é recalcitrante do passado, no que tem de glorificação mistificadora, atitude atualmente descontrolada pelas possibilidades digitais ao dispor, tal como, no plano editorial impresso, com proliferação de editoras feitoras das edições de autor, a acreditar na publicidade. Verifica-se, uma lenta renovação da poesia, com a maior participação dos diferentes falantes, com resultados ainda insondáveis.

 

     Qual é o lugar do poeta e da poesia na contemporaneidade?

     Um poema, a poesia, desperta, estimula e induz à resistência ao controle pela artificialidade monopolizadora que nos coisifica.

     A poesia, o poema, é ficção e também, contraditoriamente, nega-se à culminância da ficcionalidade, mas possui a máxima amplitude expressiva. Na contemporaneidade, um poema deve ser capaz, apesar de provocar, não poucas vezes, incomodidade, de convocar a presença do leitor, a sua sensibilidade, o seu sentimento, para o que, segundo Dufrenne, a obra espera, que é ao mesmo tempo a sua consagração e o acabamento. A poesia resistirá aos fortes condicionalismos depressores tecnológicos. Cabe-nos a resistência à alienação.

 

                           

     MarceloAriel

 

     Percebo em, por exemplo 'Banquete sem Mozart' – Radioteatro incluso em sua reunião BELEZA TOCADA –, um halo barroco que lembra alguns filmes de Glauber Rocha Poderíamos dizer que uma das linhas de força de sua poesia seria a relação entre a montagem cinematográfica, a imagem de sonho e a estrutura dramática como composição de um mundo multitemporal?

     Em Banquete Sem Mozart - Radioteatro, que refere, relatei com “câmara-caneta”, se bem lembro o termo de André Bazin. Na ‘montagem’ tive em conta a multiplicidade temporal, feixe de diversos fluxos temporais dessa polifonia, pois não há uma sequência temporal em pausa nessa teatralidade. Talvez se possa falar que decorre num tempo ucrônico.

     Explorei em livros editados posteriormente a Beleza Tocada, segundo julgo, de um modo mais vincado a estrutura rizomática, será?, quer no díptico Putrefação e Fósforo/Coração Cru, quer no inédito, Antão ou a Prótese de Nazareno, de 2021, que fecha esse ‘retábulo’.

 

 

     Luís Serguilha

 

     Qual é a trajetória da sua poesia entre os conceitos de grotesco de Mikhail Bakhtin e Wolfgang Kayser? […] Vê a sua poesia no entrecruzamento destes dois conceitos onde despontam o subversivo, a horripilância, a distorção híbrida, a ironia e o absurdo demoníaco?

     Convido o leitor, no que escrevi, quer na Beleza Tocada, quer nos livros que se seguiram, à descida aos infernos nas alusões escabrosas e lupanárias de Caridade Romana, ou quando se convoca o mundo social e político, no díptico: Putrefacção e Fósforo/Coração Cru. Aí apresenta-se como um labirinto de ónix, numa forma de escrever mosaicada, indiferente à ortodoxia classificadora, e é fragmentada em insinuação aforística, aforismo falso?, com incrustações de fábulas, foscas memórias, numa teatralidade irregular, lição colhida nas partituras de Mahler, que marca o texto no seu todo, contaminado também por Bosch, Goya, Mantegna e outros, com a desmesura de recorrer a pontos fosfóricos, mas negros, em veemente recusa, dessacralizadoramente, rejeitando disciplina censória, com recurso a caprichos, com Goya carnival presente, o que possibilita, “numa ordenação de puro azar”, recorro ao subtítulo de Putrefacção e Fósforo, conteúdos tornados forma, e que permitiram abordar temáticas em representações deformadas ou escuras com recurso, repetidamente, à anamorfose que, como lembra Kayser, está presente no grotesco. Não excluo esse enlaçamento dos conceitos do grotesco que assinala: o carnavalesco tão sublinhado, no Festa do asno, percebendo Bakhtin, quer recebendo Kayser em Flagellatium,  ambas plaquetas reunidas  em Pickelporno.

 

     Tiago Cfer

 

     O preceito rimbaudiano de que a poesia não ritmará mais a ação, mas ela estará adiante, ou seja, de que o poeta permanece vivo (vivant) quando ele chega ao desconhecido (il arrive a l’inconnu!), ainda faz sentido para quem escreve poemas atualmente? 

     O horizonte da radicalidade convocada por Rimbaud continua, no essencial, como meta perturbante da poesia. Quem escreve não negligencia o essencial das lettres du voyant (a Georges Izambard, a Paul Demeny) de Rimbaud: que a poesia sera en avant, que o horizonte do poema sonda o desconhecido (il arrive a l’inconnu!) e, o com long, immense et raisonné dérèglement de tous les sens visiona descobrir uma língua (trouver une langue), privilegiando a imaginação sobre a autobiografia.

     Pessoalmente, da visão rimbaudiana acerca da função do poeta-vidente, sublinho duas linhas que prossigo: a valorização da materialidade das palavras, o sujeito lírico estranho a si (Je est un autre), despersonalização da poesia moderna, iniciada por Baudelaire, e que Nietzsche já assinalava no processo dionisíaco, considerando que o artista está desprovido de subjetividade.

 

     Marcelo Ariel

 

     Observo em seus poemas uma espécie de espelhamento com o barroco que começou com Camões e Antonio Vieira e parece seguir em sua obra. Pode-se falar em muitos barrocos dentro do barroco?

 

     O espelhamento d’el estilo culturano do Barroco que subverte, presente na obra, como refere, mas pretendendo atingir, operar a ampliação do conceito literário do Barroco assimilado na contemporaneidade. Assumo a pretensão. Se se quiser, trata-se de uma focalização do Barroco em continuum, centrado, de modo dissemelhante, na busca expressiva, enfocado na hibridez dos textos poéticos, como ambicionei concretizar no díptico Putrefacção e Fósforo/ Coração Cru, na distorção acentuada da linguagem, mantendo-o, paradoxalmente, posso assim dizer?, em diálogo com Quevedo e com raros trechos gongóricos, mas mais acentuadamente convergindo para a escatologia de dual significação, a utópica e a fisiológica.

José Emílio-Nelson

Oriana Iório

 

     Pode-se notar em seu trabalho poético um foco muito vivo na sexualidade. Fale-me sobre tal traço e, também, a respeito da reincidente referência ao fálico, ao que há de demarcado mesmo no corpo masculino e sua simbólica, apreendida em várias dimensões. Não ao acaso, a menção a um título como Penis Penis se torna uma matriz tão identificável quanto producente.

     Reconheço a sexualidade, reincidente nas páginas que escrevi, do meu ponto de vista, como uma digressão (palavra que, com Derrida, prefiro a transgressão), um dizer, em última análise, de reposição do fôlego sexual ao infinito. O sexual, como aí se expressa — concepção estética, rejeitada pela teologia judaico-cristã, reivindica a veemência animal, corpórea, não expurgada pelo conservadorismo — provoca, combate, a correção da política totalitária kitsch, que reacende presentemente as labaredas inquisitórias e impõe injustiças sociais ditadas pelo Capital e nos torna obedientes a imperativos de uniformização.

     A simbólica fálica empolgante no centro do que escrevi, como a Oriana Iório assinala, é constante desde Penis, Penis. Penso que será instigante para a Crítica Literária Psicanalítica que, admito, não a confundirá com a fobia peniana do pequeno Hans analisado por Freud, mas certamente interrogar-se-á sobre o enunciado que entenderá ou como fala romanceada ou como um dizer isento de equívocos. Que não seja lido como phallocentrique, nem com o foro íntimo do autor. O obscuro, o enigma incondicional, a alavanca do fingimento, pode ser, não é?, um atributo da poesia, ou do trauma, dirá. 

 

 

     Mauricio Salles Vasconcelos

 

     Em qual momento se situa sua escrita depois da reunião de seus poemas em dois volumes, em diferentes épocas, contando também com extensa produção de livros? Seria possível ser feita uma súmula do que vem realizando, dando relevo à atual fase de sua criação?

     Fico desarmado com a pergunta, não sei em que momento se situa a minha escrita. Continuo a escrever o Caderno Lacado e a arquivar os poemas que se me impõem que os escreva.

     A obra tardia levanta questões que espero resolver.

     À segunda parte da sua pergunta, ressalvo que o termo beleza tocada, é uma hipótese de súmula, como perspicaz escreveu o Mauricio Salles Vasconcelos no EM TEMPO/EXTREMA POEMA (J.E-N). Outra súmula é-me difícil de objetivar de um modo mais preciso, talvez adiante o termo Mísero Canto, que Pedro Serra destacou como título de um ensaio na Colóquio Letras, dado que desde o primeiro livro cultivei a polifonia, mas sempre como voz de um mísero canto.

 

JOSÉ EMÍLIO-NELSON