RE-BUTÔ 

(novela em folhetim) 

Lucas Miyazaki


Os transtornos causavam mais desânimo em mim e certa incapacidade comunicativa. Obtive uma única imagem concreta: roupas de cama formando um casulo. Peguei o cobertor e lençóis suados e os dispus em um casulo ao longo da sala. Entrei no casulo. Era uma planície branca. Percebi que não saberia o que fazer com a imagem. Não saberia explicá-la aos coreógrafos. Nas insônias, buscando uma justificativa, li a respeito de tratamentos modernos de eletrochoque. O site da clínica especializada descrevia com minúcia os procedimentos. Pareciam aliviar e curar diversos sintomas com métodos muito mais sofisticados dos que eram usados no século passado. Placas de titânio, eletrodo nas têmporas, leves convulsões controladas para restabelecer o fluxo de neurotransmissores. Sobre a onda de transtornos, o site correlacionava-os a sintomas similares aos meus — desânimo, incapacidade comunicativa, sonos breves, suor excessivo, tremores. 

Liguei para Aisha e disse que estava francamente disposto a desistir do projeto, para “me curar”. Ela, por outro lado, se compadeceu diante da minha insegurança e reforçou que os distúrbios não atrapalhariam o processo. Ao contrário, seriam parte da pesquisa. A sua total paralisia, ela disse, sempre foi motor para os gestos. Que comentário vago, pensei. Me mantive em silêncio por um instante. Ela então disse meu nome duas vezes. Repetiu duas vezes a palavra Akira e eu, surpreso comigo mesmo, respondi. Respondi quando ela pronunciou essas três sílabas duas vezes em sequência. Mas não uma resposta humana, e sim um ruído canino, uma reação natural ao estímulo sonoro. Apenas nesse profundo angajamento animalesco é que me dei por mim, acessei diretamente o som que chegava nos meus ouvidos e então voltei atrás aceitando dar continuidade, foi o que meu ruído deu a entender. De imediato, conclui que Aisha acabara de me salvar de um ato desastroso, de um tratamento de eletrochoque. Disse obrigado ao final da chamada. Fiquei com vergonha. 

 

Sentindo que precisava aproximar minha alma ao máximo de mim com urgência, fui para uma lan house do bairro. Entrei na arquitetura mais nova, uma réplica exata da cidade que simulava a vida em tempo real. Naquela claridade cinzenta de fim de tarde, começava a garoar. Caminhava nas calçadas esburacadas e escorregadias. Estratos de barro escorrendo das obras, arrastando em vortex vagaroso, para o fundo das fossas, o conteúdo geral do solo (tudo meio mesquinho: embalagens plásticas, panfletos imobiliários, carcaças de canos quebrados, um pó de casebres demolidas...), ou parando na mulduragem implacável de uma parede prata, colossal, ao pé da calçada. 

A duas quadras, perto da estação de metrô, o fluxo de pessoas era contínuo e intenso. Adentrei nele, sentindo-me à vontade. Reconheci nesse movimentar o efeito benéfico das grandes multidões. Mas são apenas projeções!, me lembrei de repente. Não interagia com ninguém, nem mesmo de forma virutal! A sala estava fechada apenas para um usuário, e por isso mesmo poderia fazer o que bem quisesse. Vaguei por alguns quilómetros, demarcando o reinado sobre meu corpo. Andava seguindo aleatoreamente qualquer instinto, em diferentes ritmos, sempre à iminência de "fazer qualquer coisa", de cometer algum crime. Não me cansava como na vida real, mas subiu em mim um enjoo repentino. Cuspi no matinho da calçada. Também estava cuspindo no chão do estabelecimento. Um NPC se aproximou, colocando as mãos no meu ombro, apontando para o lado. Olhei para o lado, fora da grade virtual, e vi alguns baldes largados na lan house para casos de tontura ou vertigem. 

Voltei a caminhar e fui direto para a praça pública. Ladrilhos, tênis, diálogos breves, comércio ambulante... Alguns dos indigentes ainda estavam ali, dispersos, com outros que não tinha visto antes. Para lá e para cá, andando. Precisava revidar aquilo que fizeram comigo, aquilo uqe estavam fazendo. Agarrei a camisa de um deles, segurei seu pescoço, suas veias pulsavam mais do que o normal. Ele me olhava com espanto, aterrorizado, sem dar sinais do transtorno. O bafo da sua respiração ofegante chegava em mim. Com o punho fechado, continuei ameaçando-o, pensando no que fazer com ele. Olhares alheios já nos miravam com desconfiança. 

Sem dizer nada, me desprendi de seu corpo, com repulsa. Aquele NPC me causou tamanho afeto ao ponto de impedir que prosseguisse com a violação. Esta, por sua vez, cumpriria um papel de cura, de expurgo, como nos sonhos bem-sucedidos quando finalmente levamos a cabo uma ação, reflexo de alguma coisa reprimida. Pulei para fora da grade virtual e saí da arena.

 

Voltei a andar de verdade e fui aos poucos sentindo minha alma atrás da cabeça, mas me dirigia determinado à sala de ensaio, ao primeiro encontro com os coreógrafos. Lá estava Aisha. Ela conhecia cada um dos selecionados, conversava com todos fazendo questão de dizer o porquê os havia escolhido. Eles, por sua vez, se excitavam, demonstravam felicidade, querendo impressionar enquanto me olhavam de soslaio.  Sentamos no chão em um círculo para iniciar a conversa sobre a pesquisa. 

A “pesquisa” que resumia-se a uma única imagem concreta: cobertores formando um casulo de suor… 

Agora todos olhavam diretamente para mim. Eu ainda não havia aberto a boca. Aisha continuou falando, sem hesitar, referindo-se a mim como se soubesse da incapacidade comunicativa que me afligia, usando-a em prol de uma estética zen. 

A ideia será reproduzir a essência do butô, ela disse com seu tom professoral, e nada melhor do que um artista que estudou com a Satiko, uma das alunas diretas de Hijikata.

Em seguida, mencionou meu trabalho como uma cerimônia do chá em meio a um contexto distópico. Todos pareciam concordar com a frase. Ela então se levantou para ousar um movimento mais arriscado. Reluzente diante do meu silêncio constrangedor, iniciou um primeiro aquecimento. Os coreógrafos se alongaram, sem estranhar a situação. Sob influência dos cobertores, passaram a explodir suas danças na minha cara, com o intuito de me provocar. Suor, caretas, torções… Todos emanando uma confiança da criação rápida do cosmo.

Um som atravancado começou a ser a origem de um berro. Achando graça, começaram a berrar como se estivessem rasgando a depressão cinza do casulo (uma placenta).

Wes, o único dançarino que conhecia, levou a provocação ao limite e, em oposição a Satiko, em oposição a Hijikata, cuspiu. Cuspiu no alto e depois cuspiu em mim, contra Satiko e sua reclusão em um casebre em Cotia. Em uma rua que acumulava musgos.

E eles agora depositavam todas as energias dos olhos esbugalhados em Aisha. Olhos excessivamente vesgos e esbugalhados, grandiloquentes, que diziam, isso é o butô! Não é o musgo e a asfixia de um gesto estático, de um estado paralítico da matéria... Morte ao gesto paralítico e à decomposição orgânica!, os olhos esbugalhados diziam. Tomates ao corpo encurvado!, tomates ao imperialismo Hijikata!, cuspiam ao decidirem pela euforia das suas corridas.

Wes, com o cuspe direto. Cobertores formando um casulo de suor cuspido. A paralisia cinza do tecido era então estraçalhada. 

Em um esforço para sondar as trevas, moviam os dedos de olhos fechados. Pagavam caro por cada movimento, e se encurvavam a uma ordem final. (Algum estrondo maior que eles ecoava.) 

       

Ao final do aquecimento, os atores estavam envolvidos e motivados. É um tipo de procedimento escolar extremamente precário, expondo movimentos livremente e sem qualquer pesquisa prévia. Precisava agir. (Mas então iríamos partir de um casulo fétido?, Aisha me perguntava. Tampouco seria uma opção a decomposição da matéria orgânica a partir do suor, igual as coreografias de seis horas sobre o líquido da chuva ao redor dos musgos, pneus de caminhão e asfalto de estrada.)

Diante de mais um vazio iminente, propus uma roda de apresentação. Admiti não ter qualquer pesquisa prévia para dar prosseguimento. Aisha tossiu.  

      O primeiro que se prontificou foi Wes, coagido pelos colegas depois do cuspe. Em peças anteriores, ficou reconhecido por aliar o butô ao movimento krump, movimentos improvisados e explosivos, com o uso de pinturas faciais. Seus gestos descolavam-se em atos únicos e autônomos dentro das peças. Em Hamlet, Wes interpretava o protagonista sem expressividade emotiva, como se apenas comunicasse informes desesperançosos da forma mais fraca possível. Ele disse o texto parado, mexendo nas longínquas associações sinápticas que trazem à superfície palavras murmuradas, elucidando nestas a putrefação do corpo na iminência da morte. (Toda a sua miséria da fraqueza e desesperança de Hamlet culmina em uma força negativa.) 

Sua vida, de tão baixa, chamava sempre a morte e, com isso, tornava-se cada vez mais viva pelo contraste. Essa falência verbal prendia nossa atenção perto dos atores expressivos, mas era, ademais, pretexto à ação que viria momentos depois. 

A dimensão trágica da fala culmina em torções no espaço, rasgos na pele e pinturas faciais de que os diálogos e narrações apenas premonizam. Isso tudo inspira expectativas sobre o por vir. Então ergui a mão, antes que ele começasse a falar. Na tentativa de agradá-lo, disse que poderíamos montar Macbeth. Aisha me reprimiu. 

Wes refletiu, impulsionado pelo aquecimento genérico, sobre a importância do butô, não apenas para a comunidade asiática, e sim para todos os povos diaspóricos no império da alta tecnologia.

      Olhando para baixo, eu sentia um certo desgosto nas palavras que ouvia. Fui interrompê-lo novamente, exigindo-lhe uma resposta objetiva quanto à sua pesquisa. Porém, assim que pensei em fazê-lo, ele iniciou a sua declaração, não sem perdas de sentido, ofuscada pela desmesura que o acompanhava.  

Caos e ordem tecnológica se retroalimentam, disse. O céu está parcialmente encoberto por marimbondos elétricos. Ao olharmos para cima, ficamos hipnotizados vendo-os passar ao infinito. Nesse ritmo parado, sinto no interior das vísceras a constância das hélices que me faz perder o sono. Sinto que também não respiro.

Meu corpo apenas expele e introjeta oxigênio, mas não sinto o ar, se é que me entendem, o ar na minha frente, em contato com a boca, e isso me faz pensar que estou começando a me descolar de mim mesmo. Então o que fazer para além do simbólico? Ou simplesmente, o que fazer? Eu não fui acometido pela nova onda, ainda que meus companheiros tenham aderido. No hospital das clínicas me disseram que isso pode ser um efeito placebo em grande parte dos adoecidos. Uma espécie de vagar sem rumo, uma desistência. O diretor do meu partido disse para nunca mais perdemos tempo com cartas de denúncia. Ele desistiu da luta, ao menos naqueles termos, e quer agora iniciar outras atividades relacionadas com agricultura, o que me causa tédio, ainda que seja melhor do que ser acometido pelos transtornos. Pensei que ele estivesse delirando, parecia calmo naquela hora. Assim que ele mencionou a coisa com a agricultura, que iria se dedicar a esta causa, fazendo tal prática direta no mundo, eu senti um profundo tédio.

Voltei para casa, e as minhas enxaquecas voltaram a atacar. Quase tive uma felicidade por ver o meu mal estar brotando ali, não por coincidência, mas justamente depois que o diretor deixou a cidade. E então senti no interior das vísceras a constância das hélices, talvez pelo ruído que fazem ou pela vibração que chega até onde estou no meu apartamento.

Respire, serzinho medíocre, honre aqueles incontáveis mortos, eu pensava comigo mesmo, para tentar me conectar. Eu puxo e solto o ar com força, e me sinto vivo com esse gesto de serzinho medíocre.

Imediatamente me lembrei das minhas práticas de butô e de krump, que vinha fazendo há alguns anos, como se fossem necessárias para esquecer tudo isso. E então foi nesse momento que liguei para Aisha, que sempre me chamou de irmãozinho mais novo, acabou por me perdoar pelo abandono de minha parte, e então me incluiu neste projeto. Eu digo que foi por causa desse ato medíocre.

Por outro lado, preciso admitir que me senti arrependido por ter falado com você, pois a vida na cidade está cada vez mais insustentável. Hordas de seres errantes. Deveríamos nos submeter a isso? Ficam parados em estados alucinatórios. Existências inertes, descoladas de si. Não sentem o chão, sem ponto de referência, e entram em queda livre. Enquanto isso, o continuum de nossas experiências conjuntivas é interrompido pela simultaneidade das hélices.

Infoestímulos proliferam e o sistema nervoso adentra numa condição de agitação permanente que, por sua vez, atrofia nossa percepção do ar. Do tato da nossa pele. 

Se o butô não é uma filosofia alegórica, mas a negação incessante da espera daquilo que se forma no espaço, devemos desautomatizar alguma coisa que esteja introjetada, e chamar esse processo de coreografia das trevas. Penso que nossa pesquisa esteja ao nível da respiração, das dinâmicas moleculares, esse ato medíocre...  


      Todos nós ficamos comovidos com o seu discurso... Alguns deles, Aisha principalmente, choraram ao saberem que os transtornos tomavam conta de mim de forma cada vez mais severa. Parece que nossa pesquisa ganhava formas. Mas só em aparências…

Lucas Miyazaki é escritor e performer. Autor dos livros Catálise (2022) e Elefantes (2015, Prêmio Nascente). Participou das peças Não Ela: o que é bom está sempre sendo destruído (2020), Ele (2022, Prêmio Mix Brasil), Culpa (2023) e O sol desapareceu (2023). Atualmente, pesquisa Literatura Comparada em mestrado na USP (Laboratórios de criação – Escrita de Literatura e Teoria).