RE-BUTÔ 

(novela em folhetim) 

Lucas Miyazaki

Os drones faziam voos parados, cobrindo parte do céu

 

Os transtornos tomavam conta de mim de forma cada vez mais contínua. Sentia tremores na hora de dormir. Pareciam surgir de dentro dos ossos e iam até a superfície da pele, causando o que chamei de suor de insônia. Eu suava excessivamente por causa do tremor e, à medida em que a noite avançava, era tomado pelo transtorno. O psiquiatra disse que eu fora acometido pela nova onda, a mesma que deixava aquela horda de gente pelas ruas fazendo coisas inúteis dia e noite. 

No começo, eu resistia em ficar debaixo dos cobertores até cair no sono. Ficava acordado durante horas, encharcando os lençóis e colchão, justamente com aquele tipo de suor excessivo que não apenas expele água e sais – tendo saído pelos folículos pilosos, traz consigo restos de células e outros elementos resultantes de diversas reações metabólicas, atraindo bactérias e fungos comedores dessas matérias que, segundos antes, faziam parte do seu próprio corpo. (Esses seres se multiplicam e tomam conta do espaço, para além da conta, deixando-o com o cheiro azedo do suor.)

Mas depois, primeiro por respeito ao meu marido, que também acaba sendo acometido pelo suor, e também por falta de controle, eu saia da cama. Mal deitava, esperava Lin fechar os olhos, e me levantava. Aos poucos ia sentindo o meu ser se descolar de mim, ao passo em que o corpo continuava fazendo as ações que o meu espírito, atrás da cabeça, apenas observava. Eu mandava e assistia ao mesmo tempo, como se criasse um comando de programação e desse enter, vendo o desenrolar daquilo.

Na maioria das vezes, à noite, entrava no meu computador e navegava pela internet. Talvez fosse esse o ato mais meditativo e apaziguador para aquela situação. Ficar imerso em um fluxo de imagens, sons e atmosferas. Isso de fato trazia paz, talvez a sensação de sentir os chakras alinhados. 

Na consulta, mencionei os termos inventados por mim mesmo, como suor de insônia e tremor noturno, que me faziam ficar com o espírito atrás da cabeça ou acima de mim, durante horas ininterruptas, até o sono total. 

Ele disse que eu fora acometido pela nova onda. Tratava-se de um transtorno muito específico no qual o corpo dos doentes não respondia diretamente aos pensamentos. A atividade cerebral, por sua vez, se intensificava. Uma série de associações e pontos pareciam acender de forma excessiva. Isso resultava numa deficiência comunicativa e tendência à inação. 

Mas não chega a ser um transtorno muito grave, ele disse. A formação das hordas apenas coincide com certa índole e perfil de cada pessoa, representando um sintoma mais cultural do que psiquiátrico.  

Como meu quadro não tinha avançado muito — os sintomas noturno são o primeiro estágio da manifestação —, ele apenas me receitou um ansiolítico que acabara de ser aprovado, específico a este tratamento. A minha psicóloga, por sua vez, reprovou veementemente o tratamento. Decidi não tomar o remédio e senti ter sido a consulta uma verdadeira farsa. Apenas semanas depois entenderia o seu real propósito. 

 

O transtorno agravava-se com a minha incapacidade, bem naquele período, de iniciar uma nova pesquisa de butô, a arte que vinha praticando há mais de três décadas. Coincidia também com o convite que recebera para dirigir uma peça no espaço cultural, em uma mostra de artes da cena.

Aisha, a curadora, me enviara um email sobre o chamamento. Mencionava ter selecionado uma equipe de cinco artistas do butô com quem eu trabalharia. Nós faríamos parte do Pavilhão Ásia, deveríamos montar uma peça de butô como homenagem a essa expressão nascida no pós-guerra do Japão, completando então cem anos de seu surgimento com Hijikata Tatsumi e a peça Cores proibidas. Senti um profundo desgosto com a proposta. Era resultado de uma série de iniciativas de reproduzir as origens, em encenações puristas sobre o passado que mais pareciam encobrir o futuro. 

No café com a curadora, confessei não ter nenhuma pesquisa em andamento. Isso não lhe pareceu ser um problema, e sim um ponto positivo, uma vez que Aisha já havia até mesmo separado um possível nome para o projeto, re-butô. Após o abraço cultural que ela me deu (um abraço acolhedor, caloroso, cuja função é atrofiar qualquer gesto excessivo ou inconveniente), me despedi dela prometendo prontidão e total empenho na empreitada. Mas assim que cheguei em casa, naquele dia, senti o distanciamento incomum para elaborar a pesquisa de butô. Lin aceitava minha nova condição, mas não sem demonstrar, no fundo dos seus olhos, uma preocupação iminente.

  

Certa noite, vagando em fluxo de inércia pelas abas do meu desktop, caí em uma página que me mostrava um estilo de pintura chamada kusozu, uma prática japonesa surgida no século VIII e popular até o século XIX. Fiquei hipnotizado desde a primeira imagem. 

A partir daí, fiz as conexões que procurei evitar. Decidi sair de casa e confirmei minha hipótese assim que cheguei à praça pública e fui visto pela horda de transtornados. Eles não faziam absolutamente nada. Estavam sentados alguns, pendurados outros, se equilibrando em degraus, de cócoras. Mas ao me avistarem, percebendo em mim o fluido da substância maligna, e eu, o distanciamento do espírito ao corpo neles, vieram em bloco, me encurralaram. 

Olhei para cima, sem gesticular nada. Os drones faziam voos parados, cobrindo parte do céu, mas não afastaram nenhum deles de perto de mim. Percebi que suava da mesma forma que sempre suei ao longo dos meus tremores noturnos. Não sentia medo de verdade, apenas pensava que deveria senti-lo, e tentava reagir para me afastar da ameaça. Eu continuava onde estava, paralisado mas com o tremor, do jeito que meu corpo sempre ficava à noite. Nada indicava que alguém os removeria dali. Uma das mulheres, a ruiva, deu uma longa cusparada no chão. O homem alto e magro reagiu com um ruído, sua espécie de risada, rompendo o silêncio. Eu me desloquei em direção à pequena brecha que ainda restava no semicírculo que faziam ao redor de mim. Andei o mais rápido que pude. Estando atrás da minha cabeça, sentia-os perto, vindo em minha direção. Me pus a correr ao ouvir de novo aquele cacarejo. Acordei sem me lembrar de quando caíra no sono. O cenário era o mesmo de sempre. Roupas íntimas abandonadas, toalhas e um amontoado de cobertores e lençóis concentrados em um só canto do quarto. Desse amontoado, o cheiro que inundava o ambiente inteiro. 

As janelas já tinham sido abertas, com o céu branco, e ouvia-se o barulho da cidade. Ao me dar por mim, vi que Lin me olhava em silêncio. Por que você não começa daí?, ele sugeriu. O fluido ficava concentrado e acelerava a decomposição da matéria orgânica. Sim, seria um bom começo, pensei. 

Caderno de Hijikata Tatsumi com colagens a partir de Gustav Klimt, para a peça “Babar bombom”.

Lucas Miyazaki é escritor e performer. Autor dos livros Catálise (2022) e Elefantes (2015, Prêmio Nascente). Participou das peças Não Ela: o que é bom está sempre sendo destruído (2020), Ele (2022, Prêmio Mix Brasil), Culpa (2023) e O sol desapareceu (2023). Atualmente, pesquisa Literatura Comparada em mestrado na USP (Laboratórios de criação – Escrita de Literatura e Teoria).