A vida da escrita

Entrevista com Marcelo Ariel

A publicação de Escudos – Cinco R.A,P.s e um samba escritos com Cruz e Sousa seguido de  A vida de Clarice Lispector, nos últimos dias de 2022, firma a produção de Marcelo Ariel como uma das referências centrais do que pode se chamar de literatura brasileira na atualidade. Seu trabalho poético é um raro projeto de investigação aliado à inventividade, para fora da sucata histórica que se tornaram as recorrências monovalentes de experimentação e pesquisa. Vivo se revela o dissídio com uma ideia monolítica de invenção, norteado por combinações intempestivas próprias de uma nova e desafiadora época, urgentemente necessitada do corte com referendos retroativos do que antes estava avant enquanto sedimentado paradigma. Cruz e Souza mais Clarice dão a ignição de uma aventura vertiginosa de signos em prospecção.

     Justamente, ressoam a memória e a montagem – ao modo de Herberto Helder, sempre em interlocução atualizada com Marcelo Ariel – de um repertório refinado colhido em várias temporalidades, incontáveis universos de arte e saber, tal como ocorre em outros livros de M.A. De modo simultâneo, se mostra visível, mais uma vez, a abertura ao que há de mais contingente, de documental mesmo (registro agônico de geografias culturais problemáticas do Brasil), em diálogo constante, por exemplo, com o pop. A um só tempo/movimento, Ariel convoca o mítico e o místico em tal combustão de elementos, sem perda do poder de mescla com o infinito campo de recorrências estéticas e filosóficas que pontuam intensamente seus poemas.

     Juntamente com o ingresso ao universo de Cruz e Souza,  proporcionando a combinatória de Simbolismo com Ato Rapper, esse recente Escudos realiza um incurso impactante ao extrair da vida e da escrita de Clarice Lispector uma narrativa breve. Lê-se em tal propósito fusional de planos à volta da magnetizadora obra da autora – sucesso crescente na Web conjuntamente à sua disseminação no exterior, em várias línguas, nos mais conceituados círculos de exegese crítica – um sentido experimental pulsante incapaz de se apartar da sonda radical do numinoso, dos noemas pós-metafísicos da criadora de G.H.

     Assim, se relança vigorosamente atual o Dínamo Clarice, desprovido dos arcabouços aplainadores de sua potência indagadora em um inteiramente outro contexto, sem os ademanes do feminismo,  do tratamento psi, das ilações autoficcionais e de tantas aclimatações feitas a seus objetos-subjéteis giroscópicos,  gritantes, sem apelo culturalizador

Ariel entra no cerne da invisibilidade, do tão referido incognoscivel em Clarice. Abre portais, como ele gosta de dizer sobre o empenho imprescindível da escrita, rumo à invisibilidade, à indecidibilidade de um tramado paradoxal básico, indo nos cernes mais duros, desafiadores de escrever/existir no efêmero e no finito. Penso que o poeta inaugura uma outra fase em seu itinerário como autor, propiciando matrizes para posturas mais intrigantes, rompidas com a mediania da arte e da cultura em vigor.                               

     O ovo clariceano se abre feito uma rosácea esplendente em nosso atual momento, marcado por regressões e reiterados/reciclados impasses político-ético-estéticos.


                        Mauricio Salles Vasconcelos

1. Ao criar A VIDA DE CLARICE LISPECTOR, como entende a linha de escrita  da autora hoje? A especulação intensa presente nos textos dela o que contém e como toma impulso no presente? De que modo seu texto comparece como forma de ressituar a singular produção de Clarice Lispector? A alta conceitualidade ali presente pode ser compreendida como uma exigência imprescindível para a literatura?

Sabemos que não há estranhamento, sem entranhamento. Um movimento de estranhamento do mundo pode ocorrer em paralelo ao estranhamento dos modos de se dizer o mundo. Movimentos para fora do estabelecido, na direção de paradoxos do sensível, multiplicidades cosmo-orgânicas da vida sensível que em Clarice encontraram uma ótima tradutora. O ato escritural de leitura das camadas de sua própria subjetividade que ela tentou realizar foi um gesto para borrar as fronteiras, para plasmar no texto tanto a contrametáfora fusional (eleela, Ângela Pralini e etc)  e deslocar outros atos de pensamento-mundo

O ato de leitura que tento realizar é esse gesto para borrar as fronteiras. Tentei plasmar no texto tanto a contrametáfora clariceana ele-ela, quanto deslocar outros atos de pensamento dela como o ovo para a rosa e a magia para a psicanálise e esquizoanálise.

As linhas do desenho autoral clariceano se unem muito com um pensar o espaço entre um ponto em uma espécie de ‘Método Seurat’.  Para mim, seu texto é pensado com muita intensidade para fora do literário. Entra com muita força nas fontes que estão nas origens dele, que são fontes cosmo-bio-físicas. Com ÁGUA VIVA, por exemplo, ela foi capaz de ampliar o espaço entre os pontos de seu bordado ontológico e abrir alguns portais que sempre se escondem no entre.

      Uma literatura que só vai de A  até B  sem abrir estes portais do entre, não compreendeu a grande força inventiva de performances como as de Clarice, onde há um processo radical de invenção e ruptura, uma escrita da BIOS na contramão da Biografia, na direção das metamorfoses da subjetividade, que são atos-performance do pensamento do mundo, cosmosubjetividades, cosmicidades e etc...Coisas que o corpo vive e pensa para além da experiência-eu, próximo da experiência-biocósmica, tanto quanto do pós-eu da porosidade. Não há invenção do presente sem uma política da imanência, que ela de certa forma inaugura na literatura brasileira.

   A VIDA DE CLARICE LISPECTOR começou como um poema em prosa chamado SALVE INFINITO, em um processo que levou alguns anos até chegar na forma que se encontra por enquanto, digo por enquanto, porque ela foi pensada desde o início para ser uma performance ou uma peça teatral performática. O que Herberto Helder fez com o romance  Húmus,  de Raul Brandão, um  Húmus mixtape, a partir do corte e rearranjo, também me tocou muito.

  2. Recriar autores – Você o faz de modo inventivo, como se lê em A VIDA DE CLARICE LISPECTOR e, também, em ESCUDOS, dedicado à poética de Cruz e Souza. Que tipo de apropriação está aí articulada quando se observa uma tendência já entranhada na contemporaneidade a esse respeito? Pode ser considerado um procedimento-padrão tal prática?

O que tento fazer nos dois textos é uma transfiguração do conceito do símile como performance. Então, mais do que uma recriação, é uma ressignificação e por isso se afasta muito dos modos imitativos. É algo que faz parte dos processos de leitura de qualquer autor desde que a leitura seja percebida como ponto de abertura, que ocorra na dimensão do entre. É também a fusão radical de escrita do fora de si com uma leitura de desconstrução dialógica  das coisas que ocorrem simultaneamente como ato também no território dos dramaturgismos da experiência, tanto  a de leitor-em-ato como a de escrita-em-ato. A tensa dimensão do entre estes dois estados é um campo de invenção do presente. O presente se torna um portal inédito que raramente é aberto. Não há morte, nem eu no presente (silêncio e risos). Sou partidário de uma contrametafísica da autoria, que é a metafísica do entre. Entre o eu-símile-de-si-mesmo que performa o teatrofantasma e o modo-de-registro-do-pós-eu ou os indícios de uma escrita expansiva da BIOS (Cruz e Sousa  e Clarice, em questão) há a entreextraterritorialidade. É um pouco como nos penetráveis de Hélio Oiticica, é como na zona tarkovskiana. Longe de procedimentos estilístico-miméticos de coverização de outras escritas, que parece ser um padrão há décadas no Brasil.

  3. ESCRITA E NEGRITUDE - Sua produção toma um itinerário inovador nesse campo. Fale a respeito sobre seus processos e sobre a atualidade de uma nomeada Literatura Negra.

Por uma demanda insurrecional das diferenças dentro de uma dimensão nômade de extimidade escrevi o poema COMO SER O NEGRO OU A MATÉRIA ESCURA. Vejo a topologia NEGRO como parte dessa dimensão cosmicizante, movente e expansiva que foi a meu ver experienciada tanto por Billie Holiday, quanto por Rimbaud em níveis profundos. Penso até em uma fusão dos dois como uma espécie de metáfora biocósmica. Eu chamo esse campo fusional biocósmico no poema de MATÉRIA ESCURA. Para isso também aponta um poema que escrevi para a Revista Lavoura chamado  A OITAVA ASA DE MICHAEL JACKSON. Me identifico muito mais com poéticas que se movem na direção de atos de pensamento com múltiplas camadas como em João Vário e Aimé Césaire. A Literatura como digo acima, com outras palavras, só me interessa como performance das metamorfoses. A arte no Brasil é a metamorfose dos massacres, principalmente os ontológicos. Sei desde pequeno que a identidade é a mutação errada. As palavras NEGRO, MULHER, HUMANO, CRIANÇA E ETC não irão mais dar conta do que está em vias de se manifestar. Escrever, para mim, não me canso de repetir, é um ato mutacional, Por isso,  fui da TOPOLOGIA NEGRO até a TOPOLOGIA JAGUAR-ORQUÍDEA e da topologia JAGUAR-ORQUÍDEA até a MATÉRIA ESCURA. Os aspectos sócio-políticos do que tenho a dizer sobre o tema estão em uma resenha que escrevi para a Revista Quatro Cinco Um sobre as autobiografias de Frederick Douglass e Assata Shakur. Nesta resenha, entre outras coisas defendi a criação do MOVIMENTO ONÇA PRETA, uma versão brasileira do PARTIDO DOS PANTERAS NEGRAS. Curiosamente, depois disso não escrevi mais nada na revista, parece que me deram um banho de água-fria.

4. Poesia e Narrativa - Que escrito é essa NOVELA BREVE composta a partir de Clarice? Trabalho narrativo de um poeta? Como concebe a arte narrativa hoje, relacionando-a com a tradição do romance e outras formas de relato?

Estou pesquisando há anos a possibilidade de compor narrativas híbridas transfigurativas, textos transmutacionais...Para mim, a vida é transmutacional. Detesto o naturalismo e o melodrama, embora estas formas sejam importantes dentro de uma catarse pedagógico-social. Para mim, são cristalizações de ilusões de ótica escriturais. Sei que nelas podem ocorrer movimentos de imanência, mas tudo é corrompido por pulsações excessivamente esquadrinhadas, psicologicamente codificadas. Quando existem expansões estranhas do eu, como em AUSTERLITZ, de Sebald, que incorpora outras camadas, acho maravilhoso, mas isso é raro. Considero o TRACTATUS LOGICO-PHILOSOPHICUS, de Wittgenstein, uma narrativa híbrida de ensaio e poema que eu, gostaria de ter escrito. Gosto muito do  MY LIFE, de Lyn Hejinian, que foi mudado para o português por você. O que me interessa realmente é a criação de conceitos dentro de uma narrativa, os atos de pensamento, inclusive os atos de pensamento das imagens. Há dobras psicofísicas em nós, que podem incorporar o pensamento das coisas. A tradição do romance? Há livros como MOBY DICK, de Melville, e A RAINHA DOS CÁRCERES DA GRÉCIA, de Osman Lins, que contêm proposições que não foram consideradas como tendências. A metafísica trans-animal em Melville, por exemplo. Uma outra coisa: sempre li AS ILUMINAÇÕES de Rimbaud como um filme escrito. Estas linhas de força ILUMINAÇÕES-MOBY DICK permanecem territórios pouco explorados. Há projetos como o de Agústin Mallo, a trilogia Nocilla, cujo último volume NOCILLA LAB foi negligenciado pela editora Cia das Letras, que havia lançado os dois primeiros volumes e  a trilogia ESFERAS de Peter Sloterdijk, que também teve seus outros dois volumes negligenciados pela Editora Estação Liberdade. Creio que a narrativa hoje passa por estas duas experiências, recortando o esforço narrativo romanesco em Sloterdijk e o narrativo-fusional ensaístico em Mallo.

5. Que forma/força de poesia suscita hoje o projeto de Cruz e Souza? 

O uso conceitual das imagens como pensamento, Cruz e Sousa leva esse procedimento até o paroxismo. É um cine-rapper onírista. Ele e Augusto dos Anjos elaboraram poéticas de invenção, que não operavam a coverização de seus modelos e em alguns momentos iam mais longe. A poesia de hoje, em relação a projetos como estes, encolheu...O eu em Cruz e Sousa e Dos Anjos é outro, mais próximo de uma metáfora.

6. Como vê a cena literária no Brasil hoje? Hà inovação? De qual tipo, tomando-se como exemplo outros momentos da escrita em nosso País (em contextos e épocas mais recentes)?

Para mim, é essencial romper com a alegorização e romantização  egóica, com as mistificações da experiência-eu que dominam a literatura contemporânea. Estou muito interessado na trans-animalidade, meu próximo projeto de escrita híbrida está ligado a isso. Há projetos que estão chegando com atraso por aqui, como a ensaística de Anne Carson. Gosto do que ela fez com Safo de Lesbos. Meu ideal é escrever como o cavalo-marinho da imagem.

  7. Prospecções da Literatura em face da dominante tecnológica e da barragem de horizontes políticos renovadores.

Diante da imagetocracia e da indiscernibilidade dos registros imagéticos, a hibridização expansiva de novas subjetividades se faz necessária. Projeções naturantes tão radicais que poderão furar a experiência-eu. Se consegui com uma pequena margem “entrar em Clarice Lispector”, podemos também entrar em uma árvore, em uma baleia, em um beija-flor ou até no desconhecido e subestimado si mesmo atemporal da infância que está próximo dessa nova subjetividade. Lezama Lima faz isso em PARADISO. Podemos abrir as imagens com atos do pensamento e até abrir o pensamento para que o mundo possa entrar e escrever ele mesmo os livros. Há muitas insurreições da BIOS em curso.

Marcelo Ariel é poeta, ensaísta e teatrólogo. Nascido em Santos-SP, Brasil em 1968. Autor de Tratado dos Anjos Afogados (Letra Selvagem, 2008); Ou o Silêncio Contínuo, poesia reunida 2007-2019 (Kotter Editorial-Prêmio Biblioteca Nacional 2020); Nascer é um incêndio ao contrário (Kotter, 2020); As três Marias no quadro de Jan Van Eick  (Fósforo/Luna Parque/Círculo de Poemas-2022); Arcano 13 (Com Guilherme Gontijo Flores, Editora Quelônio, 2022); Escudos – Cinco R.A,P.s e um samba escritos com Cruz e Sousa seguido de  A vida de Clarice Lispector (Arte & Letra, 2022),  entre outros muitos livros.